PINTORA DE FANTASIAS


Sônia Menna Barreto – Pintora de Fantasias
Texto: José Roberto Teixeira Leite


Súbito, em meio aos velhos volumes de uma estante, irrompem as Cataratas de Iguaçu; de um balcão improvisado numa lombada de livro duas figurinhas observam, não se sabe o que; mais abaixo, ágeis bailarinas rodopiam, sob a pálida luz de uns poucos fósforos; sobre uma escrivaninha metade móvel metade paisagem convertida em estação ferroviária detém-se, resfolegante, uma locomotiva que acaba de atravessar um túnel recortado onde antes havia um descampado, o qual por sua vez interrompe uma seqüência de prateleiras; velas acesas, gôndolas, selos postais, partituras, envelopes dilacerados, personagens da Commedia dell´Arte, museus inimagináveis, engrenagens, máquinas de pintar, lupas, dados, ampulhetas, cordas, barbantes, cartas de baralho, carretéis, a Torre de Babel, castelos renascentistas, bicicletas que voam, automóveis, balões, aviões, escadarias que conduzem a espaços ambíguos, Carlitos, Frankenstein e Hitchcock, cidades inexistentes ou que deveriam existir, personagens liliputianos, puzzles, mascarados, paródias bem humoradas de Velhos Mestres, rasgões, retratos de família, reminiscências da infância e muita coisa mais - eis a matéria-prima de que se nutre a imaginação de Sônia Menna Barreto para compor seus quadros, microcosmos pelos quais o olho do espectador passeia entre surpreso e prazeroso, detendo-se aqui e ali ante um detalhe insólito, um pormenor irônico ou sarcástico: mundo do faz-de-conta, onírico, divertido, nascido da minuciosa observação do mundo real, trabalhado em sonho e depois extravasado em límpida técnica, com sutilezas de miniaturista.
Mas... onde encontrar os antepassados e precursores de Sônia, as fontes em que se abeberou para criar sua iconografia particular, toda uma autêntica Antologia do Absurdo? Como entender e situar essa pintura assumidamente arcaica, a uma primeira e superficial análise na contramão da arte de nosso tempo?
Tudo começou há 25 séculos, quando Zêuxis, disputando com Parrásio qual deles era o maior pintor da Grécia, apresentou-se com a pintura de um menino tendo à mão um cacho de uvas que, de tão reais, atraíam os pássaros, vindos de longe para bicá-las; apesar do virtuosismo, Zêuxis acabou vencido, não só por ter ele próprio reconhecido que, caso o menino se assemelhasse a um ser humano de verdade, os pássaros não ousariam aproximar-se, mas porque, ao tentar afastar o finíssimo véu que aparentemente encobria a obra do rival, percebeu que não se tratava de um véu real, e sim da pintura de um véu: Zêuxis era grande, pois conseguira iludir os pássaros, mas Parrásio era ainda maior, pois iludira o próprio Zêuxis.
O episódio, recolhido por Sêneca e Plínio o Antigo e do qual existem outras versões, revela como, na Antiguidade Clássica, a maior ou menor verossimilhança de uma obra de arte com o modelo em que se baseou era critério fundamental para a aferição de sua qualidade artística. E como para bem imitar é necessário dominar a técnica, segue-se que entre os antigos gregos arte e técnica se equivaliam, a ponto de no seu idioma sequer existir uma palavra específica para arte (na acepção que hoje lhe concedemos), mas tão apenas o ambivalente vocábulo techne.
O conceito platônico de que a pintura reflete, como num espelho, não a essência, mas a aparência dos seres e das coisas (com a conseqüência de que, sendo a arte imitação, quanto mais semelhante, mais artístico), desfrutou de grande aceitação ao longo dos séculos, refutado e retomado de tempos em tempos, e até hoje norteia o gosto dos leigos. No Séc. XV a exata reprodução da realidade seria uma das grandes inovações trazidas à arte da pintura pelos chamados Primitivos Flamengos, como o Mestre de Flémale, Jan van Eyck ou Rogier van der Weyden, tão diferentes sob tal aspecto de seus contemporâneos italianos. A respeito, vale a pena reproduzir o que escreveu Ernst Gombrich acerca do realismo vaneyckiano, palavras que poderiam também aplicar-se aos demais primitivos flamengos:
- Ele conseguiu transmitir a inesgotável riqueza de detalhes que é própria do mundo visível. Temos a impressão de que ele pintou cada ponto de um damasco dourado, cada fio de cabelo dos anjos, cada fibra de madeira.
Tão longe ia Van Eyck na imitação do real, que no cenário paisagístico ante o qual se desenrola a Adoração do Cordeiro Místico, de 1432, os botânicos conseguiram identificar dezenas de espécies vegetais, cada qual reproduzida com a mais absoluta fidelidade. Mas, se preponderava nos antigos Países Baixos, a fiel reprodução da realidade não foi exclusividade deles: praticou-a em Portugal esse estranho pintor Nuno Gonçalves, que num dos painéis do Retábulo de São Vicente, de meados do Séc. XV, retratou pescadores com tamanho realismo, que as pálpebras de alguns deles mostram sinais inconfundíveis de blefarite, uma inflamação oftálmica que costuma afetar a gente do mar.
Essa preocupação realista do Século de Van Eyck prosseguiria no Séc. XVI, centrada principalmente na Europa Setentrional; de fato, as moedas, balanças, pérolas, espelho, livros, têxteis e demais artefatos captados por Quinten Metsijs em O Banqueiro e Sua Mulher, de 1514 - cada objeto com a exata aparência que exibe no mundo real -, também passam a impressão de se estar diante não de uma pintura, mas da própria cena original: o local de trabalho de um cambista flamengo em plena atividade, tendo diante de si os instrumentos e materiais pertinentes ao ofício, e a seu lado a mulher que, ofuscada pelo reluzir do ouro, até despregou os olhos de seu Livro de Horas.
Nas naturezas-mortas holandesas do Séc. XVII, graças à larga utilização que os pintores de então fizeram da câmara escura e de outros instrumentos, a imitação da realidade atingiu um de seus níveis mais altos: num país fascinado por pinturas (vendidas até em feiras livres) e pelos problemas da Ótica, era natural que uma vasta clientela de burgueses enriquecidos no comércio ou na aventura ultramarina buscasse com avidez aquelas telas minuciosamente executadas, que reproduziam nos mínimos pormenores vidros e cristais opulentos, as mais raras porcelanas chinesas, pratas e metais reluzentes, peixes e crustáceos de formas extravagantes, tulipas e flores exóticas, ou mesmo – os mais religiosos - as vanitas com suas caveiras, flores roídas de insetos e demais emblemas da Brevidade da Vida. Pintores como Pieter Claesz, Willem Heda ou Samuel van Hoogstraten, para só ficar nesses três em meio a uma legião de outros, notabilizaram-se como fieis duplicadores da realidade objetiva, criando, no suporte bidimensional, um mundo paralelo, brilhante e artificial.
Também fizeram emprego de câmaras e outros recursos óticos, beneficiados além do mais pela perspectiva, os vedutistas italianos do Séc. XVIII, trabalhando geralmente para turistas ingleses que deles não exigiam senão beleza e verossimilhança, de modo a poder levar de volta, na bagagem, um belo souvenir dos lugares visitados. Foi nas encantadoras pinturas de Veneza, Roma, Nápoles e outras cidades peninsulares, foi nas vistas de Madrid, Viena, Munique ou Varsóvia - muitas delas reproduzidas com tal exatidão topográfica que quase se diria ser possível caminhar por entre suas ruas e becos -, que artistas como Panini, Joli, Carlevaris, Bellotto, Guardi e acima de todos Canaletto firmaram sua reputação.
Do Séc. XIX em diante suceder-se-ão os diversos tipos de realismo: Realismo propriamente dito, à la Daumier e Courbet, Realismo Burguês, Naturalismo, Verismo e, já no Séc. XX, Surrealismo, Realismo Social, Realismo Socialista, Hiper-Realismo, Realismo Fantástico e Nouveau Réalisme, tendências artísticas, todas elas, que direta ou indiretamente se vinculam à realidade, sendo que algumas (como o Naturalismo, o Verismo, o Realismo Socialista e o Hiper-Realismo) enfatizando a imitação tanto quanto possível exata do mundo concreto.
Decerto a mais exacerbada forma a que atingiu o realismo foi a pintura de trompe-l´oeil, capaz de, como o nome o diz, enganar o olho do espectador, levando-o a crer estar diante de um objeto tridimensional, quando de fato o que vê é sua representação no plano. Tipificaram-na no Séc. XIX, de modo superlativo, pintores como os norte-americanos Charles Bird King, com seus interiores atafulhados de livros e objetos em desordem; Raphaelle Peale, que munido do physiognotrace, aparelho ótico inventado pelo pai, percorreu de ponta a ponta os Estados Unidos fazendo retratos a baixo preço, ao mesmo tempo em que anunciava nos jornais, como garantia extra aos clientes: No Likeness, No Pay; e o mais importante de todos, William Michael Harnett, famoso por suas composições com cachimbos, objetos de escrita, livros e garrafas sobre uma escrivaninha, envelopes, cartas de jogar, notas de cinco dólares, apetrechos de caça e pequenos animais abatidos. Como tais pintores fugiam por completo à arte do seu tempo (que, não é ocioso lembrar, era o tempo de Cézanne, Monet, Gauguin e Van Gogh), já isso basta para explicar a incompreensão e o descaso que os acompanharam em vida e inclusive depois de mortos, situação da qual só seriam resgatados em meados do Séc. XX, para atrair desde então as atenções de crítico e historiadores de arte, ao mesmo tempo em que suas obras, disputadas por museus e grandes colecionadores, passavam a atingir altíssimas cotações nos leilões de arte.
A partir de começos do Séc. XX, e sobretudo após suas décadas finais, quando o próprio conceito de Pintura passou a ser questionado, diminuiu compreensivelmente o número dos que a concebiam como imitação da realidade, dela partiam ou a ela se ligavam; no entanto – e deixando obviamente de lado a imensa legião dos acadêmicos, que macaqueiam a tradição pensando que lhe dão seqüência -, muitos foram os que se mantiveram fieis à reprodução do visível (não raro o transfigurando), devendo ser citados nesse particular, cada qual em seu próprio estilo, alguns já falecidos, outros em plena atividade, os norte-americanos Otis Kaye, Edward Hopper, Grant Wood, Andrew Wyeth, Romaine Brooks, Richard Hamilton, Sylvia Sleigh e Delmas Howe; o francês Martial Raysse, a portuguesa Paula Rego, a mexicana Frida Kahlo e o chileno Cláudio Bravo; os italianos Francesco Clemente, Fabrizio Clerici e Nicola de Maria; o austríaco Rudolf Hausner, a alemã Käthe Kollwitz, o russo-americano Peter Blume, o húngaro Balthus, o chinês Zhang Xiaogang, o polonês Hans Bellmer... em suma: um perene desfilar de artistas, nos cinco continentes.
Como se pode perceber, em sua opção pictórica Sônia Menna Barreto não está sozinha, porém muitíssimo bem acompanhada.


Mas Sônia não se contenta em simplesmente iludir o olho do espectador: quer seduzi-lo, fasciná-lo, subjugá-lo a seus caprichos. Disposta a corrigir o mundo, reinventa-o a seu modo, subverte-o, como criança travessa coloca-o de pernas para o ar, desmonta-o como a um velho relógio para ver como funciona por dentro e, com a mesma sem-cerimônia com que pinta em simulações de dorsos de telas, vira-o pelo avesso para melhor compreendê-lo. Para ela a Beleza deve ser, como a definiu Latréaumont, o encontro fortuito de um guarda-chuva e de uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação; por isso suas pinturas estão repletas de encontros fortuitos, de diálogos mudos entre objetos sem aparente afinidade, de transgressões à lógica e atentados ao senso comum. Mas se para Goya “o sonho da razão produz monstros”, isso não se aplica aos sonhos pintados de Sônia, nos quais inexistem monstros e nem há espaço para o medo, a angústia ou o drama, sendo como são (ao menos na aparência) instantâneos bem humorados, fixados ao vivo e a cores pela câmara digital de uma sensibilidade sui-generis. Aqui, contudo, convém agir com cautela: é que neles surgem com inquietante freqüência imagens de locomotivas, cartas de baralho, da Torre de Babel, de livros, tocos de vela e muitos outros objetos, nas quais talvez seja possível identificar, bem mais do que simples registros de meros devaneios, exorcismos, a catarse de recônditas angústias ou obsessões.
Tome-se por exemplo o caso de pinturas como Torre de Babel, Lápis de Tróia, Torre de Papel, Leonard Cheshire (desde 2002 na coleção da Família Real Britânica) ou Men at Work, as cinco inspiradas direta ou indiretamente na grande pintura homônima de Bruegel (de 1563), e repletas de pequeninos detalhes, fixados com virtuosismo. É bem conhecida a história, descrita no Gênese, da Torre de Babel, a Porta de Deus (na verdade um zigurate de sete andares, dedicado a Marduk, cujas ruínas foram há tempos descobertas no sítio onde existiu Ur, no Iraque atual), a qual depois de concluída possibilitaria aos descendentes de Noé contemplar Deus face a face; tomado de cólera ante tão sacrílega ousadia, Jeová fez com que os construtores da imensa estrutura passassem a falar cada qual de uma forma diferente, o que teria originado as línguas do mundo, mas acabou por levar ao fracasso a empreitada, já que ninguém mais conseguia entender-se. É certo que torres, na tradição cristã, simbolizam vigilância e, porque apontam para o céu, também ascenção, elevação do espírito; mas não seriam antes, essas Torres de Babel tão insistentemente retratadas por Sônia Menna Barreto, alusões conscientes ou não à incompreensão que hoje divide a Humanidade numa porção de guetos que se desconhecem e por isso mesmo se odeiam? Não servirão acaso para traduzir o isolamento, a impossibilidade de comunicação entre os seres humanos? Nunca esquecendo Drummond: Não ame: fique quieto em seu canto...
E que dizer das locomotivas, captadas nos mínimos pormenores de sua sólida arquitetura em obras como A Última Parada, Platform 2, A Chegada, The Trip, Século XX ou Men at Work? Pode-se encará-las, é claro, apenas como belas formas que são; mas não convém esquecer que a partir de sua vulgarização no Séc. XIX a locomotiva passou a preencher no imaginário popular o lugar até então ocupado pelo cavalo, e em eras remotas por monstros, serpentes e dragões. Nos sonhos, locomotivas, trens e trilhos podem simbolizar a boa ou má direção que nos foi imposta, ou que nos impusemos nós mesmos; pode também aludir à rotina, à inexorabilidade de um destino pré-traçado e do qual em vão se tentaria escapar.
Um parêntese: certos mestres antigos não costumavam assinar suas obras, preferindo marcá-las com figuras ou sinais capazes de as identificar com facilidade, mesmo porque era enorme então o número dos que não sabiam ler; assim fazia o pintor flamengo Hendrik met de Bles, isto é, com a coruja, porque sempre dava um jeito de dissimular entre suas paisagens e pinturas de história a figurinha de uma dessas aves; assim outro flamengo, Joris Hoefnagel, que se assinava com o cravo (nagel) do sobrenome; caso também do alemão Lucas Cranach, que firmava seus quadros com um dragão ou serpente alada. Sônia também se escolheu um logotipo, que aliás não poderia ser mais adequado: autora, intérprete e espectadora do gran teatro del universo que é a sua obra, ela utiliza como marca registrada um personagem da Commedia dell´Arte, que aliás reaparecerá em quadros como Canaletto, Pausa para Descanso, O Circo, O Diretor, Os Trapaceiros ou The Carnival Scene, entre outros.
É compreensível o fascínio de Sônia por essa forma popular do teatro quinhentista italiano, com seus personagens inconfundíveis – Pantalone, Il Dottore, Il Capitano, Briguella, Punchinello, Arlecchino, Colombina, Meo Pattaca, Gianduia e vários outros –, um, patife; outro, fanfarrão; perdido de amores, esse; aquele, charlatão; e os demais se revelando, ao sabor dos acontecimentos, pedantes, interesseiros, venais, generosos, covardes, comilões, avarentos, grosseiros, astutos, ingênuos, vazios, falastrões, traiçoeiros, desonestos, românticos, cada qual representando uma faceta da vasta fauna humana, com vestimentas e máscaras características e todos improvisando, em cena aberta, situações, momices, posturas e falas: é que a Commedia dell´Arte (diga-se que arte, aqui, refere-se à habilidade histriônica, vocal e corporal dos atores) permite que Sônia improvise, fantasie, devaneie, cônscia de que a vida é uma comédia, e o mundo, o imenso palco em que cada um de nós representa bem ou mal seu papel.
Isso se percebe de modo claro em O Diretor, de 1993, pintura que, em sua enganosa singeleza, é das mais sofisticadas produzidas por Sônia, até pelo recurso à metalinguagem de que nela se utilizou. Destaque-se desde logo que na referida pintura, que se desdobra em nada menos de seis planos, a artista simulou um dorso de tela sobre o qual pintou uma vista do Gran Canale, decerto inspirada em Canaletto, com gôndolas e outras embarcações, cúpulas e torres de igrejas, palácios, figurinhas humanas, tudo sob intensa luminosidade: no primeiro plano, projetando-se desde um ponto exterior ao quadro até apoiar-se na cena principal, vê-se um pincel com sua sombra, tendo à esquerda uma cadeira típica de diretor cinematográfico - só que com a indicação esclarecedora de estar reservada a um pintor -, e à direita, pisando num tubo de tinta e tendo ao lado no chão a paleta, nem mais nem menos do que Pulcinella - ventrudo, corcunda, a máscara negra concluída em colossal nariz, recurvo como um bico de abutre -, que com seu pincel retoca de vermelho uma moldura... dourada; pendente do canto esquerdo de um passepartout também simulado, um pedaço de papel com a irônica inscrição: per restaurare! ... reto. Por onde se conclui que Sônia é quem dirige o espetáculo: diretora e pintora, o seu é um segredo de Polichinelo, de um Polichinelo que pinta, e dela é que fluem e se concretizam, como num fiat mágico, todas essas formas e cores e planos e texturas.
Pinturas que simulam dorsos de telas, o que permite à artista revelar seu virtuosismo e mais uma vez atestar sua atração pelo insólito, formam um contingente considerável na produção de Sônia, que recorreu ao expediente em obras como I-Me-Mine (1886), Prático (1987), Carnaval em Veneza (1992), Canvas Back (1992), O Circo (1993), A Partida (1993), Carta de Veneza (1993), Toledo (1996), O Crítico (1998), Back to Holland (1999), The Falls e ainda outras. É verdade que no longínquo Séc. XVII o holandês Cornelis Gijbrechts já pintara um dorso fingido de tela, mas não sabemos de pintor contemporâneo, além de Sônia, que com tanta insistência tenha feito apelo a esse tipo de recurso, espécie de convite à subversão da ordem natural das coisas. Tome-se o quadro Prático, por exemplo: à primeira vista, trata-se de um um bodegón à maneira de Zurbarán; mas atente-se melhor, e se verá que aquelas frutas placidamente dispostas num cesto não foram cultivadas num pomar qualquer, antes nasceram da imaginação de Sônia. Repare-se: ao lado de uma pêra e de uma maçã comuns, estão uma pêra desabotoável e duas bananas dotadas de zipper, sem falar no morango que, qual um fio de prumo, pende de um prego enterrado no suporte, e de uma estranha tangerina que desafilou o cinto (!) para revelar seus gomos. E o que a artista terá pretendido significar com o carretel e a aliança situados em primeiro plano?
Livros são uma constante nas obras de Sônia Menna Barreto, enfileirados em suas respectivas estantes, onde não raro cedem espaço para a inserção de vistas urbanas (I-Me-Mine, 1986; Canaletto, 1992; Toledo, 1996; Carta de Veneza, 1993, Maio; 1994), cenas insólitas (A Última Parada, 1992; Game Tour, 2002; Swift River, 2003; The Carnival Scene, 2005) ou vasos de flores (Os Doze Erros, 1995), quando não servem, dispostos lado a lado ou empilhados uns sobre os outros, de simples molduras para enquadrar pinturas dentro de pinturas, como em A Chegada (1998), The Trip (1999) e Florence (2000), entre outros. Livros, todos o sabem, são emblema de conhecimento, revelação, consciência, verdade, sabedoria, inteligência e mesmo, em certos contextos, do próprio Universo. Fechado, aponta para o mistério, o secreto, o inatingível, o desconhecido; aberto é revelação, iniciação. Assim é que se fala no Grande Livro da Natureza, do Destino, do Mundo, do Universo, define-se uma vida sem máculas como um livro aberto, alude-se às páginas do Livro da Vida, a Bíblia e o Alcorão - são definidos como o Livro dos Livros. Não precisa ir mais longe, pois a intenção é destacar o lugar proeminente que Sônia concede aos livros na conceituação do seu mundo de idéias, sendo facilmente identificáveis, porque reproduzidos com todas as letras nas telas, nomes de autores como Tchecov, Dickens, Pirandello, Steinbeck, Lewis Carroll e vários outros, inclusive – e aqui mais uma vez a prova do seu espírito brincalhão – o de Shakespeare, encimando a velha lombada de um exemplar de... Os Lusíadas.
Paródias, citações bem humoradas de pinturas dos Velhos Mestres constituem outro aspecto particularizador da obra de Sônia, apaixonada pela História da Arte e se aparentando, sob tal aspecto, aos transvanguardistas italianos das décadas de 1970 e 1980. Sua preferência parece dirigir-se para os flamengos e holandeses, como Pieter Bruegel, Frans Hals e Avercamp, mas ela também presta homenagem a Canaletto, Longhi e Guardi, Velásquez, Claude Lorrain, Gainsborough, Hopper e inclusive – postando-se galhofeira e sem-cerimoniosamente entre os mestres antigos, a ela mesma, cuja “assinatura” se lê numa vista urbana reproduzida, abaixo da reprodução de uma paisagem de Ruysdael, na página de um álbum de pinturas exibindo ironicamente numa etiqueta o preço: US$ 25. As figurinhas atarracadas de Pieter Bruegel também povoam o universo pictórico de Sônia, ora em sua aparência original, de rechonchudos campônios flamengos, ora travestidos em trabalhadores contemporâneos, entregues aos mais diversos afazeres - como se vê nas já referidas Leonard Cheschire (2002) e Man at Work (2003).
A fantasia de Sônia não recua sequer ante o que se poderia definir como trocadilhos visuais: é o que ocorre em Gostar de Sê-lo, de 1987 – as salas em perspectiva de um museu cujas paredes exibem, ao invés das pinturas originais, suas reproduções em selos postais; ou numa tela de 1990, na qual quatro mulheres de elevada condição social, holandesas do Séc. XVII a se deduzir pelos ricos trajes, tipo de gola e de toucado que usam, matam o tempo jogando cartas, enquanto ao fundo, de um quadro pendurado à parede, um valete de espadas as observa. Repare-se que a jogadora ao centro, uma Rainha de Copas, bisbilhota o jogo da vizinha, a qual, perdida em seus pensamentos, nem percebe estar sendo espionada. A ironia consiste em que, primeiro, o título da tela é Jogo de Damas, quando não se trata desse conhecido jogo de tabuleiro, mas sim de um jogo de cartas; segundo, porque três das jogadoras são cartas de baralho elas próprias, e somente a quarta, justo aquela que está sendo enganada, tem a aparência humana. Não fora a arte de Sônia de todo avessa a qualquer intenção moralizante, até se poderia pensar estar-se diante de uma alegoria aos malefícios do jogo, de uma denúncia contra o vicio de jogar e suas artimanhas. Terceiro exemplo de trocadilho visual na obra de Sônia: Barco a Vela, de 1992, no qual duas caravelas navegam, movidas não pelas tradicionais velas de pano, mas por tocos de velas de cera, acesas decerto pelo enigmático homenzinho que de uma pedra as observa, apoiado a um fósforo e tendo à mão esquerda outro fósforo, ainda aceso.
Que dizer das incontáveis escadas visíveis em obras como Janela Indiscreta (1989), O Crítico (1998), O Crítico e o Artista (1999), The Trip (1999), Swift River (2003) e principalmente nas diferentes versões da Torre de Babel? Escadas, no antigo Egito, eram símbolo da ascenção da alma em direção a Osíris – o que explica a forma em degraus das primeiras pirâmides, como a do faraó Djeser em Saqqara; hoje continuam a simbolizar ascenção, a passagem de um plano a outro, físico ou metafísico, a gradual elevação ao conhecimento, como também, no sentido inverso, queda, descida, o retorno ao chão e, em certos contextos, ao mundo subterrâneo. Sônia pode tê-las utilizado, inconscientemente, em algum recôndito contexto, embora valha a pena lembrar que muitas vezes uma escada é apenas... uma escada.
Fósforos, caixas de fósforos e velas que ardem ocorrem com freqüência em outros quadros de Sônia, além de no acima mencionado Barco a Vela: cite-se A Estante (1989), From Holland to Aruba (1990), Aprendiz de Feiticeira (1991), Le Musée du Roy (1991), Canaletto (1992), Os Trapaceiros (1994) ou Outono (2004), o mesmo ocorrendo com cartas de baralho - Aprendiz de Feiticeira (1991), Le Musée du Roy (1991), Os Trapaceiros (1994), The Trip (1999), Film Festival (2001), Game Tour (2002) -, selos postais – Carta de Veneza (1993), Back to Holland (1999) -, velhos retratos familiares – (Album de Família (1991), Barco a vela (1992) - e envelopes (Carta de Sully (1991), Carta de Veneza (1993), O Liberal (2003) -, sendo que às vezes mais de um motivo se combinam numa pintura, como em Carta da Holanda, de 1991, ou Os Doze Erros, do ano seguinte. Não será necessário ressaltar a densa simbologia ligada às cartas de jogar, mas cumpre destacar a tela Aprendiz de Feiticeira, na qual Sônia fixou uma leitora de buena dicha que lança o Tarot, vendo-se logo à esquerda, sobre a mesa, o décimo-nono arcano superior – O Sol, que aquece o mundo e simboliza energia, vitalidade, amor. A cigana traz ao colo o Bufão, enquanto a seu lado o Mago, com a cabeça em funil concluída por uma vela acesa, tem diante de si um livro aberto no qual se lê: Witches Recipes by / Menna Barreto. É oportuno lembrar que na simbologia medieval o funil é símbolo demoníaco, e como tal aparece amiúde nas pinturas de Jheronimus Bosch. Também não será preciso sublinhar o conteúdo emocional de velhos retratos familiares, nem quantas lembranças nos evoca a simples visão de um envelope. Emblemático da nostalgia da infância é o óleo Álbum de Família, no qual uma criança em roupas antigas salta do fundo de velha fotografia para, com as pernas para fora da moldura, penetrar no austero ambiente de uma sala fin-de-siècle, onde estão, evocações da perdida infância, uma pipa, peças de O Pequeno Arquiteto e o cachorro que, deitado num envelope que se ergue do chão (ou do passado), fita afetuosamente o dono.
Num grupo de composições mais ambiciosas, Sônia Menna Barreto amplia sua capacidade de nos surpreender. Nessas pinturas, mais do que em outras, ela se utiliza do recurso eminentemente barroco da enumeração caótica, para aproximar seres e coisas de épocas e lugares distintos, fazendo com que aviões, bondes elétricos, automóveis e locomotivas convivam com gôndolas, carruagens, uma caravela e até um holandês, pelo jeito contemporâneo de Rembrandt, que pedala entre trilhos sua bicicleta (Século XX, 1999). De igual maneira Film Festival (2001), que se passa no interior de um cinema e é sem dúvida das pinturas mais bem realizadas da artista, a famosa cena de Tempos Modernos em que Carlitos é tragado pela máquina reparte o espaço/tempo com Batman, O Homem de Lata, Drácula, Frankenstein, o Gordo e o Magro, Carmen Miranda e um tiroteio à la John Wayne, vendo-se ainda, em primeiríssmo plano, Hitchcok e Al Jolson, enquanto projetados na tela King Kong, no alto de um arranha-céu novaiorquio, é atacado por aviões, uma bicicleta corta o céu levando E. T., o Extraterrestre, e um barco pendente de um balão tenta escapar do Escorpião Rei; à esquerda, na platéia, dois lanterninhas recém-fugidos de alguma Tentação boschiana discutem, cada qual personificando uma carta de jogar.
O tema das relações proverbialmente tensas entre artistas e críticos de arte motivou à nossa pintora duas composições bem humoradas: O Crítico, de 1998, e O Crítico e o Artista, do ano seguinte. Na primeira, dois pintores trabalham num recinto iluminado pela luz que lhes chega através de uma janela, à esquerda, e dos candelabros e fósforos à direita; cada qual no topo de uma escada, executam a quatro mãos uma paisagem rochosa italiana à maneira de Mantegna; de costas, ajoelhado e de lupa em punho, um crítico de cabeleira empoada e libré examina não a pintura, como seria de esperar, porém o que parece ser a sombra projetada pela escada na parede... Igual ironia perpassa pela segunda pintura, O Crítico e o Artista, a qual tem por cenário um cavalete, sobre o qual foram dispostos os dois personagens; próximo a um vidro de pinceis, um velho crítico foca sua lupa sobre a assinatura “Menna Barreto” que tem diante de si, num sítio ainda em branco do suporte – se é que não teve a atenção desviada para o estranho objeto que, pendente de um fio, cai-lhe verticalmente bem diante do nariz; enquanto isso o pintor, absorto em seu trabalho, do alto de uma escada dá os últimos retoques numa grande vista de Florença, vendo-se as águas do Arno que escorrem da tela abaixo, ao mesmo tempo em que velhas casas se derretem como se fossem de chocolate.
Ironia, sarcasmo e bom humor são uma constante do trabalho de Sônia, como já se observou. Não me lembro qual terá sido o pintor, creio que Pop, que em certa ocasião declarou desejar ser uma máquina: foi para satisfazê-lo, talvez, que Sônia inventou em 1988 essa complicada Máquina de Pintar – uma geringonça cheia de rodas dentadas e parafusos reluzentes, movida a eletricidade e conectada a duas chaves inglesas, uma empunhando o pincel – da marca “Menna Barreto” - e a outra uma paleta que não podia ser mais tradicional; sobre o cavalete, produto desse casamento entre o novo e o antigo, pequenina tela ainda inacabada.


Terminado esse longo passeio pela temática sui-generis de Sônia Menna Barreto, é tempo de analisar as características estilísticas e pictóricas de sua arte, e de destacar certas particularidades de sua produção.
Já se viu como essa artista, dotada de vívida imaginação, tem encontrado na História da Arte e em outras fontes literárias o ponto de partida para muitas de suas mais felizes composições – o que não significa que sua pintura se subordine servilmente quer à História, quer à Literatura, ou que muito menos seja um pastiche da grande arte do passado; viu-se também como o temperamento de Sônia revela-se ora irônico e brincalhão, ora nostálgico e romântico, sem que em nenhum momento haja em seus quadros espaço para fantasmagorias, tão só para fantasias; como neles persistem imagens que talvez correspondam àquilo que René Huyghe chamou de textura da alma; como, por opção pessoal, Sônia se posicionou à distância das vanguardas artísticas de fins do Séc. XX e começos do Séc. XXI; e afinal como, além de ser responsável por uma série de achados pessoais, e de em certas ocasiões ter dado novo significado a velhos chavões surrealistas, ela soube, nisso repetindo Goya, enriquecer de disparates suas telas, capazes de criar nos que as contemplam forte impacto visual. Mas a pintura de Sônia não é apenas pitoresca: é também pictórica, porque embora seja difícil resistir à tentação de “ler” todo o seu rico repertório de formas e de situações, Sônia é essencialmente pintora, e é como pintora que se expressa.
Ela não subordina rigidamente suas pinturas às leis da perspectiva, tanto aérea quanto linear; não que as desconheça, mas porque prefere fazer uso de uma perspectiva que se diria onírica, ou sentimental: isso significa que nas suas telas figuras e objetos assumem a dimensão que lhes quer dar a fantasia da artista. Sônia também não se vê obrigada a respeitar sempre a anatomia humana, embora o faça em muitas ocasiões; por outro lado, em sua produção são raras as representações de espécimes da fauna e da flora, pois a pintora parece preferir às aves os aviões, às árvores os arranha-céus e à paisagem a visão panorâmica das cidades. O colorido, nos quadros de Sônia, acompanha a cor natural, o que quer dizer que neles o céu é azul, as nuvens são brancas, o telhado dos casarios vermelho e assim por diante; a liberdade cromática manifesta-se porém na variedade de verdes, vermelhos, azuis, amarelos, cinzas etc. que se observa na lombada de um livro, no estofado de uma poltrona, nos trajes de um bufão. Quanto ao modelado, Sônia o obtém à maneira tradicional, com auxílio dos contrastes entre luzes e sombras, e pela distribuição pelos diferentes planos das figuras e objetos, na superfície da tela. Também a sugestão da matéria é respeitada, bastando ver como logrou imitar texturas tão diferentes quanto a de uma locomotiva e a de um livro, de um toco de vela ou de uma carta de baralho, a maciez de uma flor ou o pêlo encrespado de um cão.
Sempre no que diz respeito à técnica, diga-se que Sônia iniciou seus estudos de pintura aos 16 anos, com Waldemar da Costa, um bom artista hoje quase esquecido, não fora pela circunstância de ter orientado os primeiros passos de vários pintores hoje famosos; seu aprendizado com esse excelente mestre durou apenas um ano, tempo porém suficiente para inculcar na adolescente o respeito à técnica e o amor à disciplina. Não admira assim que se tenha adquirido bons recursos técnicos, centrados em bom desenho e em sua habilidade inata em reproduzir com exatidão a aparência de seres e objetos. O segundo mestre de Sônia seria Luiz Portinari, que durante três anos lhe deu aulas de História da Arte e de pintura, e que, além de ter sido o primeiro a detectar a natural inclinação da jovem para o Surrealismo, lhe revelou Max Ernst. De Chirico, Magritte, Delvaux e Dali, que se tornariam desde então seus favoritos.
Essa aproximação de Sônia Menna Barreto com os surrealistas leva-nos contudo a questionar se não seria mais correto incluí-la entre os realistas fantásticos, de vez que, como movimento, o Surrealismo não sobreviveria à morte, em 1966, de seu principal teórico, André Breton, ao passo que o Fantástico não teve começo e nem terá fim, sendo de todos os tempos e lugares, e tanto está no Jardim das Delícias de Bosch quanto numa escultura esquimó, na arquitetura de Gaudì, no Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha ou na Flauta Mágica de Mozart. Depois, não há na pintura de Sônia alguns dos ingredientes mais típicos do Surrealismo, como a nota política ou a angústia sexual.
Realista fantástica, eis o que Sônia é: realista porque, servida por boa técnica estribada em sólido desenho, reproduz com fidelidade e em minúcias a aparência dos seres e das coisas; e fantástica porque, graças à sua fértil imaginação, consegue transcendê-lo, transfigurá-lo, recriando em seus sonhos pintados a mão a atmosfera da perdida infância.
Se abrirmos agora na página 182 o velho Dicionário Técnico e Histórico de Francisco de Assis Rodrigues, publicado em Lisboa em 1875 e ainda de muita utilidade, e se aí procurarmos o verbete Fantasia, nele leremos:

FANTASIA, ou PHANTASIA, s. f. do lat. Phantasia, do gr. phantazia, de phainó, brilhar, luzir; phantozomai, imaginar, imaginação, facilidade imaginativa. Em belas artes entende-se pela composição fantástica, nascida da imaginação caprichosa dos artistas, sempre mais ou menos fundada nos objetos da natureza. Daqui as produções singulares do gênio, como os ornamentos de capricho, as caricaturas, os grotescos, etc., por onde é costume dizer-se, que tal artista é pintor de fantasias.

Pintora de fantasias: não será essa, quem sabe, a definição mais precisa que se deva dar a uma artista como Sônia Menna Barreto?